Conto de Fadas
Quando estiver em Paris, não deixe de visitar Montmartre, o bairro boêmio da capital francesa. Todavia, se quiser uma experiência para além do turismo ordinário, recomendo que procure pelo pedinte Danton Leborgne, na Place du Tertre, e pergunte qual o segredo de sua longevidade. Não se assuste com o tapa-olho esfarrapado.
Vai ouvir do pobre miserável que ele seria filho bastardo de Louis XIV, o Rei Sol. Dá para acreditar nisso? Não para por aí. Segundo o desvalido, sua mãe era uma das empregadas do Palácio de Versalhes e ele passou a infância desfrutando de seus famosos jardins. Diz que conhece cada canteiro e cada escultura do local e fica nervoso se você duvidar. Do bon vivant Dionísio ao todo poderoso Apolo. No entanto, a sua escultura favorita era a do Fauno. Aquele ser meio homem, meio bode, tocando uma flauta, exalava magia, ao contrário daqueles deuses tão humanos.
Seu fascínio pelo encantado contrastava com o medo que tinha de perambular pelos Jardins à noite. Já seu meio-irmão Jacques, cinco anos mais velho, não se intimidava e volta e meia saia pela madrugada desbravando os bosques.
Outro passatempo de Jacques era atormentar o irmão caçula. Zombava de sua covardia, o humilhava em frente às outras crianças, que faziam coro aos insultos.
Até que Danton, cansado de correr para as saias da mãe procurando salvaguarda, encheu-se de coragem e, num dia frio de março, colocou seu casaco de algodão e pediu para seguir o irmão em suas aventuras.
- Tá bom bebezão, mas fique sabendo que, se ficar com medo e quiser voltar antes da hora, eu não vou te acompanhar - disse Jacques - Agora, se ficar comigo a noite toda, eu prometo parar de pegar no seu pé.
Acordo fechado, os irmãos esperaram os criados adormecerem e saíram a passos lentos do alojamento em que viviam, portando apenas uma lamparina. No início da caminhada, passaram em frente à estátua de bronze de Netuno. A escultura, que durante o dia era gloriosa, ganhou ares soturnos e dava a impressão de estar viva, seguindo os meninos com os olhos, conforme o reflexo da lamparina se movia.
Com o olhar fixo na estátua, Danton acelerou o caminhar, ao que Jacques reagiu:
- Calma, bebezão, ainda nem começamos. - E segurou uma risada.
Cruzaram o Bosque dos Banhos de Apolo, contornaram a Lagoa da Flora e chegaram na Bacia do Obelisco, onde, pasmem, não há um obelisco. Jatos de água fazem as vezes da estrutura que dá nome ao local, porém, naquela hora da noite, estavam desativados.
- Ei, quer ver uma fada? Não me diga que tem medo de fadas?
Danton balançou a cabeça, primeiro afirmativamente, depois negativamente.
Com o dedo indicador, Jacques apontou para uma das saídas de água no chão, depois ajoelhou-se ao seu lado e colocou um olho na sua ponta.
- Tem uma fada bem aqui, venha ver. - Levantou a cabeça e deu espaço para o irmão.
Danton então ajoelhou-se ao lado e encostou seu rosto na saída de água, porém não viu nada além de escuridão. Reclamou com o irmão que não havia fada ali, quando percebeu a lamparina se apagar e a escuridão tomar conta de tudo à sua volta.
De forma abrupta, o futuro mendigo levantou a cabeça e olhou ao seu redor. Sem sinal do irmão. Sentiu o coração acelerar e o odor de suor chegou às suas narinas.
Logo em seguida, três massas brancas entraram pelo acesso à sua frente e o cercaram, gritando palavras incompreensíveis. Danton perdeu o equilíbrio e caiu sentado no chão. Um líquido quente encharcou sua calça. Então, as três figuras começaram a rir.
As aparições tiraram os lençois brancos que os cobriam e revelaram serem Jacques e seus amigos Jean e Pierre.
- Por Deus, Bebezão. Além de medroso, você é burro. Acredita em fadas - gritou Jacques, entrecortado por risos.
Lágrimas escorriam dos olhos de Danton. Não eram lágrimas de tristeza, mas sim de puro ódio. Desejou do fundo de seu coração que seu irmão morresse naquele instante.
Como que atendendo às preces do infante, um leve tremor desequilibrou os arteiros e um zumbido ensurdecedor expulsou o silêncio da noite. Pelos canos dos jatos de água, incontáveis pontinhos verdes fosforescentes jorraram pelo céu negro e iluminaram os garotos.
Os pontinhos colidiram violentamente contra Jacques e seus amigos, que balançam os braços para afastá-los, sem sucesso. Um dos pontos em alta velocidade entrou no abdômen de Jacques, pelo umbigo.
Outro deles parou bem em frente ao rosto de Danton. O menino abriu um largo sorriso ao constatar que se tratava de uma fadinha. Reconheceu suas perninhas, bracinhos e um vestidinho verde. Seu desejo estava sendo realizado. Até aquele momento.
O sorriso murchou do rosto de Danton quando a fadinha graciosa afastou-se alguns centímetros e, embalada, partiu com tudo contra o seu globo ocular esquerdo, onde se encontra até hoje, de acordo com o mendicante. É isso que o mantém vivo, afirma sem pestanejar.
Que bobagem, não? É claro que tudo isso são devaneios de um homem que passou sua vida toda excluído da sociedade. Outro morador de rua da região me confidenciou que Danton perdeu o olho numa briga de bar. Pode confirmar por si mesmo, pergunte ao mendigo. Ele se chama Jacques e tem bandagens expostas ao redor da barriga.
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