Ágape

 O Sol brilhava no zênite, em um céu azul de brigadeiro, quando Ávolos passou correndo pela praça central do Plano Astral Alpha e entrou no prédio da Central de Informações. Sim, este cenário clássico é permanente no Plano Astral Alpha. Porém não, as almas e os seres celestiais que lá habitam não vestem apenas túnicas brancas, apesar de este ser o modelito preferido dos mais conservadores.

Desde que desencarnou, Ávolos tinha uma única obsessão: encontrar Ágape, seu grande amor. Os últimos meses de vida na Terra foram felizes porque a conheceu. Pena que foram tão poucos.

Como os problemas são raros no Plano Astral Alpha, a Central de Informações está sempre às moscas, isto é, se houvesse moscas no pós-vida. Ao entrar no hall principal, Ávolos vê o balcão de atendimento ocioso e se dirige para lá imediatamente.

- Bom dia! Ou, boa tarde? Ainda não me acostumei com a passagem do tempo aqui  - explica com um sorriso amarelo.

O ser astral atrás do balcão o encara com seu rosto sem olhos por um segundo e depois volta a seus afazeres.

- Eu estive aqui ontem.

- Para saber se Ágape já desencarnou. Esteve aqui nos últimos cinco dias - o balconista respondeu com voz monótona.

- Exato! Então, ela desencarnou?

- Não, ela permanece na Terra.

- Como será possível? Eu morri faz seis dias, o que dá pelo menos uns setenta anos terrestres - disse após fazer as contas com as mãos.

-  Setenta e dois anos, quatro meses, seis dias, onze horas e quarenta e dois minutos.

- Então deve ter mais de cento e vinte anos. Puxa, não esperava que permanecesse viva por tanto tempo.

- E não permaneceu, não exatamente. A sua amiga foi criogenizada - disse o balconista sem tirar os olhos de uma caixa que deveria fazer as vezes de computador, apesar de não ter tela, teclado ou mouse.

- Como é que é?

- A criogenização é um processo de congelamento…

- Eu sei o que é a criogenização. Só não esperava que Ágape fosse se submeter a isso - Sem piscar os olhos, ficou encarando a parede - E ela não é só minha amiga.

Como se desperto de um sono leve, Ávolos sacudiu a cabeça e falou, mais para si do que para o balconista:

- Bem, eu volto outro dia.

Ele voltou. Todos os dias pelos próximos nove dias. E em todos estes dias a resposta era sempre a mesma: “Ágape permanece criogenizada”. Até que, no décimo dia, teve novidades. Ágape foi reanimada com sucesso. Porém, a tecnologia não permitia a sobrevida de seu corpo. Assim, seu cérebro foi removido e mantido vivo por máquinas.

Levou mais três dias para os humanos criarem um mecanismo que permitia a comunicação com o cérebro que era Ágape e outros cinco para que desbloqueassem as memórias da alma, tornando-a ciente de suas vidas passadas.

A cada novo progresso, Ávolos sentia um misto de esperança e angústia. Ágape estava mais próxima da morte, e consequentemente do Plano Astral Alpha, ou ainda viveria incontáveis anos?

- Ela deve estar sofrendo muito. Devem estar, digo, estão, certamente, mantendo ela viva contra a vontade. Ágape deve sofrer a minha falta tanto quanto eu sofro a dela.

Fazendo um monólogo sobre o que poderia estar acontecendo com sua amada, Ávalos andava de um lado para o outro em frente ao balcão de atendimento da Central de Informações. Se no Plano Astral Alpha tudo não fosse eterno e perfeito, teria criado uma trilha no chão com o seu caminhar.

- Me diga, ser celestial, estão impedindo Ágape de desencarnar?

- Essa informação é sigilosa - O balconista girava a caixa-computador aparentemente sem um propósito.

Com as mãos na cabeça, Ávolos tentava pensar em formas de reencontrar seu amor.

- Saberia informar se a vida no planeta Terra está próxima de seu fim?

O balconista levantou a caixa-computador e a examinava com curiosidade.

- A vida na Terra foi extinta há mais de cem anos terrestres. Todavia, a humanidade sobreviveu e hoje habita nos satélites de Saturno, se é isso que queria saber.

- Hum. Sempre soube que aquela ideia de ir para Marte não ia dar em nada. E quanto tempo a humanidade ainda vai perdurar?

- Essa é uma informação sigilosa.

- Essa é uma informação sigilosa - grunhiu enquanto revirava os olhos.

Esperar Ágape desencarnar não era uma opção. 

- Ok. Já sei o que fazer. Eu vou reencarnar como humano.

- Você já passou pela existência humana. Sua próxima reencarnação deve ser no quinto nível, como um Octoviano da galáxia JADES-GS-z14-O. Ou poderá reiniciar sua caminhada a partir do primeiro nível, atingindo o estágio humano, caso não haja alterações de padrão, no quarto nível.

Sem pensar duas vezes, Ávolos correu em direção ao Centro de Reencarnação. A jornada no mundo dos vivos seria longa e ele não tinha tempo a perder.

A sua primeira reencarnação foi como um plâncton no oceano subterrâneo de Kepler-22b, que em apenas nove dias de uma existência monótona, sendo movido pelas correntezas,  foi devorado por um peixe achatado de listras azuis e douradas. 

Na reencarnação seguinte veio como um anfíbio peculiar, uma espécie de rã cor de areia que vive no deserto e precisa de pouquíssima água para sobreviver, em um planeta ainda inominado na Galáxia de Andrômeda. Foram oito anos pulando de um lado para o outro entre dunas escaldantes até encontrar seu fim aos oito anos de idade, afogada em areia movediça.

Na terceira rodada de sua jornada, Ávolos foi um canino de pequeno porte sob os cuidados de uma família de moluscos superdesenvolvidos, em um planeta parecido com a Terra, no sistema de Alfa Centauri. Tirando o episódio da castração, sua vida foi extremamente confortável e tranquila. Morreu de velhice aos quinze anos, sobre seu puff preferido numa noite fria.

Finalmente, regressou à vida humana. Nasceu na lua saturniana Titã, na metade de seu inverno de sete anos, o que não foi um problema, pois os humanos viviam em sua maioria reclusos nas colônias espaciais construídas sobre o satélite, onde as temperaturas eram sempre estáveis. Seus habitantes contavam os dias, meses e anos da mesma forma que seus antepassados, independentemente da rotação e da translação do corpo celestial.

Ávolos, nomeado por sua família de Zion, teve uma infância comum, do ponto de vista das pessoas que viviam no século XXV. Educado na escola básica da Colônia de Titã, aos oito anos destacou-se na programação de Andróides Mineradores, responsáveis por extrair matéria prima das luas vizinhas. Aos quinze, já liderava a Divisão de Recursos Naturais e, em seu tempo livre, estudava sobre a era pré-espacial. Sonhava com a vida em um planeta azul e verde, onde animais e plantas viviam livres e os humanos não necessitavam de trajes especiais para andar pela superfície.    

Ao completar vinte anos, como todos os humanos de seu tempo, Zion foi encaminhado ao Departamento de Estudos da Mente, para desbloquear as memórias de suas vidas passadas. O procedimento criou milhões de conexões neurais em nanossegundos. Sentiu como se uma bomba atômica fosse detonada dentro de seu crânio, queimando e mutando todas as suas células cerebrais. Zion ainda estava ali, mas agora era parte de algo maior, Ávolos. 

Assim que recuperou os sentidos, lembrou-se de sua primeira vida como humano e de Ágape. As memórias de seus dias no Plano Astral Alpha e das encarnações posteriores também vieram à tona, e ele deixou escorrer uma lágrima quando a sensação de objetivo alcançado tomou conta de si. Antes que pudesse satisfazer o impulso de perguntar sobre sua amada, os cientistas responsáveis pelo procedimento o informaram que ela já sabia de sua reencarnação e o aguardava no laboratório em que vivia, coincidentemente no mesmo edifício da Divisão de Recursos Naturais.

Encontrou sem dificuldades o laboratório. Havia passado diversas vezes em frente, sem sequer sonhar que ali estava quem tanto buscou. O espaço era amplo, sem mobílias, com exceção do largo tubo de vidro em seu centro, no qual um cérebro boiava num líquido mais azulado que o corante mais azul das balas mais industrializadas.

No começo, permaneceu quieto, concentrado na imagem surreal à sua frente. De repente, algo ressoou em sua mente:

- Ávolos, como veio parar aqui? Não conheço ninguém que tenha reencarnado outra vez como humano. 

- Ágape, meu amor. Eu esperei tanto tempo para te encontrar. Você não imagina a minha agonia. O que fizeram com você? Por que te mantiveram neste estado? - Caminhou em direção ao tubo e encostou delicadamente a palma de sua mão direita nele.

- Ninguém me manteve aqui. - A voz soou confusa, enquanto bolhas eram vistas saindo de baixo da massa encefálica - Eu estou aqui por vontade própria.

- Mas, por quê? Viveu tanto tempo sem mim. Poderíamos ter seguido juntos nossa jornada.

Ávolos contou sobre sua chegada no Plano Astral Alpha e descreveu cada questionamento que fez ao ser celestial do Centro de Informações, e citou ipsis litteris cada resposta. Relatou as etapas que passou para poder voltar à vida humana e enfatizou que todo esforço foi feito para estar ali, com ela.

- O que nós tivemos foi algo especial, mas minha vida não se resume a você. Nem a ninguém. Não sei como dizer isso. - Veio um intervalo que durou uma eternidade - Não deveria ter me esperado.

A declaração foi como um soco no estômago.

- Não é possível que esteja dizendo isso. Depois de tudo o que eu passei para estar com você, é isso que eu escuto? Você não tem amor nesse seu coração? Digo, cérebro?

Mal terminou a frase, uma quantidade absurda de bolhas começou a sair debaixo do que restara de Ágape, o fazendo dar alguns passos para trás. A voz soou áspera:

- Eu tenho amor sim. Muito amor. Eu escolhi este caminho por amor. Amor pelo meu trabalho. Amor pela humanidade. E até mesmo amor por você. Ou você esqueceu que eu estava progredindo na cura do seu câncer quando você faleceu? Não é justo você me cobrar.

Por um momento, ambos permaneceram em silêncio. Melancólico, o reencarnado fitava os pés.

- Desculpe se o tratamento não estava completo quando precisou - A voz vibrou gentil.

- Entendo - respondeu, desviando o olhar - Não sabia que você era tão excepcional.

- E não sou. Faço parte de uma equipe, apenas dei minha contribuição. Eu amo esse trabalho. Quando finalizamos a pesquisa, se você visse o resultado, a alegria no rosto daqueles que se curaram.

Cabisbaixo, o homem agora chamado de Zion deu as costas ao tubo azul e dirigiu-se à porta.

- Adeus, Ávolos. Espero que você encontre o amor como eu encontrei - soou a voz em sua mente pela última vez.





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