Ad Infinitum


Ouviu três batidas fortes na porta. Quem seria aquela hora da noite? Só poderia ser algum vizinho, já que o interfone não tocou. Levantou-se de sua escrivaninha e dirigiu-se à porta. Ouviu outras três batidas, ainda mais fortes. Sentiu o chão tremer, como se o exército de Hades marchasse no subsolo, mas convenceu-se que isso não fazia sentido, deveria ser só uma ilusão. Com a respiração acelerada e as mãos envoltas por uma fina camada de suor, prosseguiu seu caminho. Porém, a poucos passos da entrada, um violento golpe arrebentou a porta, derrubando-a. Por trás da abertura, vislumbrou na penumbra uma imensa silhueta humanoide.
O vulto entrou no apartamento, deixando a escuridão do corredor, e revelou sua aparência. Tratava-se de um homem calvo, de calça jeans preta, regata branca manchada de gordura e exageradamente musculoso. Tão musculoso que não dava para saber se seu trapézio era super desenvolvido ou se ele não tinha pescoço. Teria ele mais músculos que um ser humano comum?
- Você não entregou o que prometeu! - vociferou a criatura.
Dando passos para trás e gaguejando, tentou dizer que não o conhecia, tinha certeza de nunca tê-lo visto em sua vida, quanto mais feito alguma promessa a ele. Mas suas palavras eram entrecortadas e as frases se misturavam, formando uma língua pouco mais compreensível do que a junção de aramaico com esperanto.
- Você prometeu uma história infinita, mas só entregou isso! - Subitamente, surgiram nas mãos do homem duas folhas de papel em branco, que agitava no ar.
As folhas pareciam comuns. Estava certo de que não foram entregues por ele, tampouco que mandara outra pessoa entregá-las. Além do mais, não teria como ter entregue história alguma, pois sequer finalizou sua primeira.
O invasor deu um grito inumano e precipitou-se em sua direção. Sem que pudesse perceber, estavam correndo em círculos em volta da mesa de jantar. Após algumas voltas, sentiu tontura e, quando pensou que não conseguiria mais fugir, viu a porta caída à sua frente e atirou-se para fora do apartamento, em direção às escadas.
Por instinto, desceu os degraus em altíssima velocidade, saltando vários de uma só vez. Acima ouvia o rugido de seu agressor, agora mesclado com vozes igualmente hostis. A cada lance de escadas sentia a distância para seu perseguidor (ou seriam perseguidores?) diminuir, apesar de não enxergar ninguém quando olhava para o alto. Sentiu-se como em um documentário que assistira, sobre a vida selvagem, mais precisamente na cena em que a capivara, exausta, vacila e é mortalmente ferida pela mordida da onça pintada que surge entre os arbustos.
Apesar de seu apartamento ficar no quinto andar, tinha certeza de que já havia descido dezenas de lances de escada, o suficiente para chegar no décimo subsolo, se houvesse tal pavimento. Suas pernas vacilaram e ele desabou, rolando pelos três últimos degraus da escadaria.
No chão, percebeu que não ouvia mais barulho algum acima. Escutava somente sua respiração ofegante. Era como se estivesse sozinho no interior de uma espaçonave. Levantou-se, um pouco dolorido, mas com nenhuma lesão séria, pelo que pode perceber num exame superficial.
Demorou para processar o que estava acontecendo. Viu que finalmente estava de frente para a porta corta-fogo que dava no hall de entrada. Como voltar para o seu apartamento não era uma opção, seguiu para o saguão. Lá, a entrada principal do edifício estava trancada e sua tag, única forma de abri-la, ficara no apartamento, afinal quando se tem que correr por sua vida esses pequenos detalhes acabam passando despercebidos. Sem titubear, voltou-se para a porta dos fundos, que abria por dentro e que dava para o estacionamento. Ao abri-la, deu de frente com uma mulher jovem, esbelta, de cabelos longos, sorriso delicado e olhar curioso. Estava vestindo um conjunto de academia que revelava sua boa forma.
Perdeu a respiração ao vê-la e, por um segundo, esqueceu-se de tudo. Mas recobrou a consciência e julgou relevante alertar a moça acerca dos perigosos que havia no prédio. Mal começou a falar quando vislumbrou duas folhas de papel em branco nas mãos da mulher. Na hora esqueceu-se do que estava falando e sentiu um raio gelado atravessar seu corpo do cérebro aos dedos dos pés. 
Incrédulo, ele viu o semblante da mulher mudar. As sobrancelhas arquearam, o sorriso que era tímido agora mostrava grandes dentes reluzentes e o olhar transmitia uma maldade profana.
A jovem deixou escapar um leve riso. Depois, atingiu-lhe com um gancho de direita na boca do estômago que fez seus olhos lacrimejarem e suas costas arquearem. A dor era tamanha que ele finalmente caiu de joelhos.
- Você não entregou o que prometeu - ela disse com a tranquilidade de uma monge budista - cadê a história infinita? Achou que ela caberia nestas duas páginas? Sério?
Enquanto tentava se erguer, a mulher deu-lhe uma joelhada na cabeça e ele viu o mundo girar. 
A porta da escadaria se abriu e seu agressor originário e vários sujeitos idênticos a ele adentraram o hall. Ao seu redor, vozes em uníssono falavam “você não entregou o que prometeu”.
De costas no chão, com os braços estendidos, começou a aceitar que não tinha como escapar e lembrou-se do documentário sobre a capivara. Mas afinal, o que ele prometeu que não entregou? O que aquelas folhas queriam dizer? Uma história infinita…

Despertou sentindo um líquido gosmento e morno em seu braço. Estava com a cabeça afundada nos braços cruzados sobre a escrivaninha e um pouco de baba escorria do canto da boca. A tela do computador marcava zero horas e quarenta e oito minutos e o documento de texto aberto estava em branco.
Tinha que entregar o conto de até duas páginas no dia seguinte pela manhã e nem havia começado. Meio zonzo, mas aliviado, percebeu que não fazia ideia de sobre o que iria escrever. Pensou um pouco e começou a digitar: “Ouviu três batidas fortes na porta. Quem seria aquela hora da noite?”.






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